16.1.07

008 as mãos segundo caravaggio, 2
















Rapaz mordido por um lagarto (c.1595), Caravaggio


O quadro propõe-nos um episódio narrativo, aguarda que o ficcionemos. O rapaz, que até ao momento se entretivera com jogos de efeminação - tem uma flor sobre a orelha e a camisa caída pelo ombro direito abaixo -, é interrompido, abruptamente, por um esticão eléctrico que lhe percorre o corpo. Surpreendemo-lo no exacto instante em que um lagarto lhe morde o dedo médio da mão direita e ele reage: acaba de erguer o ombro direito em direcção ao rosto, como que se protegendo; tem a boca semi-aberta, sem tempo para esboçar um gemido; os olhos arrepelados e a fronte franzida desenham a dor e a surpresa num ricto.

Parece que o encontramos no limiar da emoção que sucederá ao susto: a ira. A sua postura é já a de alguém irritado, aliás. Graças ao rosto? Também. Mas, se ocultarmos as mãos, compreendemos que estamos na presença de uma pose. O que dá plausibilidade à cena e a essa metamorfose são as mãos.











Pormenor de Rapaz mordido por um lagarto (c.1595), Caravaggio


Antes de tudo, a mão esquerda. Retirada, quase passa despercebida, mas é ela que, erguida com ferocidade, manifesta o repúdio. Está ali como que a impedir que alguém se aproxime. E a origem deste desagrado está naturalmente na mão direita que recebe a mordidela. Esta é uma mão delicada, que mantém ainda parte do gesto que antecedeu o arrepio. Talvez se estendesse para «colher» a flor do boião de vidro. Foi quando o lagarto interrompeu o seu movimento grácil, puxando o dedo médio para baixo com a boca repugnante. Pressente-se, então, a imperceptível metamorfose de uma mão repleta de ternura e delicadeza para uma mão crispada e reactiva: o dedo mindinho retrai-se em cunha, o anelar estica-se, o indicador curva-se e o polegar torna-se rígido...









Pormenor de Rapaz mordido por um lagarto (c.1595), Caravaggio


O modelo pode, agora, relaxar e voltar aos seu jogos, porque Michelangelo Merisi já tem o que pretendia.

10.1.07

007 entre figuras

















Lausane (s.d.), Nadir Afonso


Nadir Afonso afirmou, um dia, que em pintura tudo é redutível a figuras geométricas. Parece verdade, embora o expressionismo abstracto de um Rohtko obrigue a uma reformulação de tal tese, bem como a utilização obessessiva da cor pelo próprio Nadir seja prova de que, em pintura, a forma não basta: existem as relações da cor, por exemplo. Importante é ressalvar, no entanto, que as relações das figuras geométricas são um modo de ocupar o espaço e de criar um lugar e não formas vazias de conteúdo. O geometrismo não acusa apenas a exaltação pitagórica da divindade dos números e das formas. Sem um lugar entre , não há vida possível. (Seria interessante pensar, a propósito, que lugar nasce das telas de Rothko e que tipo de experiência proporcionam, se estética se espiritual). Sem lugar, não há respiração. Nem fruição estética. É o que aprende o olhar na relação com a simplicidade das figuras geométricas e o espaço que as define. E depois há uma pintora cujo objecto representado é o lugar ele mesmo: Vieira da Silva.

Les grandes constructions (1956), Vieira da Silva

2.1.07

006 efeitos do fulgor

A perda de forma do indivíduo está, em geral, associada à dissolução da matéria do corpo num todo panteísta ou material e, consequentemente, à morte. Na História da Pintura, há (certamente entre muitos outros) dois exemplos de perda de forma que não representam a morte dos «indivíduos» retratados: penso n’ O espargo, de Manet, e nas Mulheres resplandecentes em frente da chapelaria, de Macke.

O espargo (1880), Manet

Com finalidades diversas embora, os pintores ignoraram parcialmente o traço distintivo do ser que representavam, abrindo-o, prolongando-o pelo espaço adjacente. Esta fusão parcial – que me aparece como um delicioso símbolo da ilusão das fronteiras e da posse, quando se trata de seres vivos (ou, pelo menos, orgânicos) –, esta fusão, dizia, opera-se através da cor ou, mais exactamente, da luz. E é significativo que isso aconteça deste modo, porque a luz é aquilo que possibilita todas as distinções visuais e a sua ausência (a noite, o negro) aquilo que tudo dilui no caos primordial.















Mulheres resplandecentes em frente da chapelaria (1913), August Macke


Nestes dois casos, a luz têm a função da noite, a curiosa função de unir e não de separar. E tal acontece através de um fenómeno natural, o da resplandecência. Como se no instante do fiat lux criador a luz fosse tão intensa que ocultasse, pelo menos em parte, as formas da criatura. Que as ocultasse ou, por outra, como se as mesmas formas ainda retivessem - e desse modo revelassem - algo do fulgor do acto criativo, algo da resplandecência que liberta o acto fecundo. É assim que o criador Manet abandona a tela sabaticamente, após meia dúzia de pinceladas rápidas de pura sugestão. Quanto a Macke, a resplandecência é, porventura, a de um vidro pagão dando sobre as faces urbanas de duas damas. Uma dela protege-se do reflexo, voltando a cara para trás; a outra aproxima-se do vidro com vista a evitar o excesso de luz – mas nem assim evita a dissolução do rosto.

Ou seja, a resplandecência, como excesso de luz que é, cega (ainda que apenas momentaneamente), de tal modo que corresponde exactamente ao efeito que tem a noite sobre os contornos dos objectos e dos corpos.

(Acresce dizer que as mulheres de Macke – como em tantos outros quadros seus – não possuem os pormenores do rosto. O seu objectivo não é representar pormenores ou sentimentos, mas harmonizar um todo de linhas, cores e formas. Esta abstracção faz as suas mulheres resplandecentes assemelharem-se àquelas alucinações em que copos de vidro se desfazem em luz. Talvez o sentido apurado do pintor lhe tenha fornecido a intuição de que, um dia, todas as formas desaparecerão na luz!)

Dedico este texto à Armandina Maia