26.12.06

005 adolescência














Três estudos para figuras na base de uma crucificação - Primeira figura (1944), Bacon


Observais-me, mas estou demasiado encerrado no meu corpo para vos ligar peva. E, paradoxalmente, talvez me encontre assim devido a vossos olhos. Sou um ser exposto, completamente exposto na sua fragilidade sobre uma mesa; um ser sem pernas suas para escapar a vosso olhar esvaziante. Sou adolescente e escondo-me - é o máximo que posso fazer - por detrás da minha guedelha.

A vergonha é o princípio do que sou. O meu estado actual, porém, é outra coisa. Não possuo boca, e isso é o mutismo absoluto - e o mutismo é o supremo suplício para quem é essencialmente grito.

Sou também uma contorção em desequilíbrio, um torso prestes a afocinhar desamparado. Vejo a vertigem que me separa, angustiosamente, do piso laranja. Nada, nem ninguém, pode curar este medo da queda iminente de se cair no que se não é. Porque eu nada sou: a não ser imobilidade e contorção. Sem boca e sem membros não posso fugir nem procurar - a minha única linguagem é o novelo de carne fria que sou.

Chamem-me o autocrucificado - e pensem que os pregos são a blusa que me evolve, a blusa de minha mãe.

20.12.06

004 rios à noite

A noite – ou o anoitecer – confere uma consistência de sólido à água. Na realidade, a luz fá-la parecer viscosa como um óleo queimado, mas em pintura é comum percepcioná-la como areia ou pavimento baço, frio, morto. É assim que a vejo nos portos nocturnos de Rousseau ou na Vista de um porto, de Friederich.

A ilha de Saint-Louis vista do porto Saint-Nicholas (1888), Rousseau














Vista de um porto (1815/16), Friederich


E, depois, em completa oposição, há a água vibrante de Noite estrelada sobre o Ródano ou a água sob a forma de corrente viva na curva d'O canal «Roubine du Roi» com lavadeiras, ambos de Van Gogh. Água heraclitiana, jorro de cor e de vida.

Noite estrelada sobre o Ródano (1888), Van Gogh

O canal «Roubine du Roi» com lavadeiras (1888), Van Gogh

12.12.06

003 as mãos segundo caravaggio, 1

Pormenor das mãos de A virgem do rosário (1607), Caravaggio

A expressividade das mãos de Caravaggio!

Independentemente do motivo da obra, elas merecem sempre uma atenção especial do pintor. Nunca se ficam pelo esboço e raramente são ocultadas na sombra. O resultado é sempre de um requinte e sensibilidade surpreendentes. E mesmo quando não são perfeitas - ele procurou, antes de mais, como é sabido, a imperfeição -, nunca chegam a ser grosseiras. Porque as mãos, para Caravaggio, têm algo a dizer - e o que dizem é essencial.

No que a mãos diz respeito, Caravaggio é, portanto, um expressionista avant la lettre. Em geral, elas, mais do que qualquer outra parte do corpo, contêm a súmula da expressão das figuras retratadas. Seja um sentimento violento ou a serenidade do sono, está lá quase tudo. E esta concentração emocional é tão moderna que antecipa as mãos crispadas de Schille, as mãos deformadas de Picasso, e talvez todas as mãos que, posteriormente, se fizeram linguagem e comunicação em pintura.

10.12.06

002 defeitos da natureza

A horta (1879), Camille Pissarro

Pois, porque nós praticamente não existimos. Repare que, já nessa época, nossas vidas em nada se destacavam do nosso trabalho. Eu era velha, minha irmã deixara de ser nova e nosso irmão cumpria, mas não dava nas vistas. Cumpríamos, aliás, os três, um destino de cor, perfeitamente integrados na horta e na tela. Tivéramos paixões, mas o corpo fora adormecendo - quando monsieur Pissarro chegou, nada havia a conversar ou a defender: que nos pintasse.

No fim, mostrou-nos o resultado, e tudo nos pareceu conforme. Eu estivera de costas, o nosso irmão permanecera ao fundo, quase escondido, o rosto da minha irmã pouco visível - íamos dizer ao homem que ele não sabia pintar? E, sim, aquela era a nossa horta. Pelo menos, a minha. Provavelmente, o pobre pintor era míope, como eu. Censurá-lo por uma deficiência da natureza?

9.12.06

001 perder-se





















La perspective amoureuse (1935), Magritte


A resposta imprevista do quadro
que reconfigura a porta,
da porta que se abre em vazio,
do vazio onde nasce a árvore,
da árvore que manifesta a paisagem,
da paisagem que se quebra nos limites da porta,
da paisagem que se abisma no invisível:
assim a perspectiva de quem ama a cor
e por ela é chamado a entrar no quadro
- e se perde.