4.2.07

009 a cozinha: van gogh vs. velázquez

Em Abril de 1885, Vincent van Gogh escreve ao irmão Theo: «Proponho dedicar-me esta semana à tela que representa os camponeses em torno de uma travessa de batatas, à noitinha - talvez ainda à luz do dia - ou ambas ao mesmo tempo, ou nenhuma delas - dirás tu. Pode ser que o consiga, e pode também suceder que não tenha êxito; seja como for vou começar a esboçar as posições das várias figuras.» Vincent tem trinta e dois anos.

Os comedores de batatas (1885), Vincent van Gogh

Duzentos e sessenta e sete anos antes, contando dezanove anos, o jovem Velázquez conclui o quadro Velha fritando ovos.

Comparando o resultado tosco das tentativas de van Gogh - Os comedores de batatas - com o de Velázquez, conclui-se facilmente que aquilo que um só com muito esforço obtinha, o outro alcançava com naturalidade. O que no primeiro era ímpeto, hesitação, vigor, tenacidade, sofrimento, rudeza, no segundo, era ideia, segurança, fluidez, naturalidade, alcance, subtileza. Um, inquieto, vivendo entre os camponeses de Nuenen e retratando-os, procurava-se; o outro, destinado, vivendo na cosmopolita Sevilha, encontrava-se. Mal comparado, um Beethoven e um Mozart das cores e da luz.

Velha fritando ovos (1618), Velásquez

E são sobretudo as cores e a luz (ou a ausência dela) o que impressiona em ambas as telas. No quadro de Velázquez, os elementos (um cesto de palha, a cabeça de um rapazinho, o braço esquerdo segurando um melão, o direito segurando uma garrafa de vinho) como que nascem da escuridão do fundo, flutuando. A fonte da luz que dá a consistência e uma materialidade quase tangível a estes elementos e aos restantes (a velha, os ingredientes e os utensílios de culinária) está ausente. Note-se a propósito do realismo da representação, no brilho do verniz da taça de barro em que a cozinheira frita os ovos, o brilho da panela de cobre, a sombra da faca pousada sobre a malga branca). No quadro de van Gogh, estando a fonte da luz presente (um candeeiro de pavio), o que sobressai é sobretudo a obscuridade. Dir-se-ia que nenhum elemento (o casal jovem, o casal de velhos ou a criança, as chávenas, o bule, as batatas ou os objectos pendurados nas paredes), nenhum desses elementos se destaca: o quadro vive do tom ocre e as figuras estão ali artificialmente colocadas para comporem um «sentimento verista» - uma melancolia vinda da miséria e honestidade dos «retratados». «Quis fazer de maneira a ter-se a ideia de que esta gente humilde que, à luz do seu candeeiro come as suas batatas tirando-as ao mesmo tempo da travessa, foi quem cavou a terra em que as batatas foram cultivadas; este quadro evoca, pois, o trabalho manual e sugere que estes camponeses merecem honestamente aquilo que comem», escreverá Vincente, ainda em Abril de 1885, a Theo. Neste sentido, o pintor logrou alcançar o objectivo inicial. O plano da produção estética, confundia-se, por estes anos, na cabeça do pintor, com uma função social e pedagógica. Numa palavra: um moralista.

Quanto às motivações de Velázquez, não as conhecemos, mas há quem veja nesse bodegone (quadro representando cenas de cozinha ou de taberna) as concepções alegóricas do tempo, e assim o ovo que a velha cozinheira segura representaria a fragilidade da existência. Aceitando a interpretação, o quadro não deixaria de ter um fito pedagógico, mas muito mais doutrinal e distante, como convinha ao tempo e ao lugar em que foi pintado. E de resto a artificialidade (que é uma virtude da arte) não deixa de estar presente no rapaz que segura a garrafa de vinho e o melão: acabou de chegar, ou faz uma pose, como se fosse elemento de uma natureza-morta composta pelo pintor?

É um facto que a cozinha asseada e as figuras do pintor espanhol, ainda que dentro do tom da probidade, nada têm em comum com a cena de refeição goghiana. A obscuridade desta cena consegue ser lúgubre, enquanto que a escuridão da outra, pelo contraste, enobrece as figuras batidas pela luz. Num outro bodegone de Velázques, Três homens à mesa, de 1618, que representa igualmente uma refeição, a míngua de alimentos também é notória, porém, ali há alegria. Ora, tal não acontece com os camponeses quase animalescos do holandês. Aqui sente-se o jugo da fortuna, ali esse jugo é contornado, ou menos terrível. Em suma, são duas concepções de nobreza e de realismo que se põem em cena, ambas naturalmente válidas e compreensíveis. Aliás, não é apenas o carácter de cada um dos pintores que se reflecte na tela, não é apenas a subtileza da pincelada de um e a pincelada grosseira do outro que se contrapõem, é também o lugar em que as obras viram a luz. Velázquez estava bem onde estava, assim como van Gogh.

16.1.07

008 as mãos segundo caravaggio, 2
















Rapaz mordido por um lagarto (c.1595), Caravaggio


O quadro propõe-nos um episódio narrativo, aguarda que o ficcionemos. O rapaz, que até ao momento se entretivera com jogos de efeminação - tem uma flor sobre a orelha e a camisa caída pelo ombro direito abaixo -, é interrompido, abruptamente, por um esticão eléctrico que lhe percorre o corpo. Surpreendemo-lo no exacto instante em que um lagarto lhe morde o dedo médio da mão direita e ele reage: acaba de erguer o ombro direito em direcção ao rosto, como que se protegendo; tem a boca semi-aberta, sem tempo para esboçar um gemido; os olhos arrepelados e a fronte franzida desenham a dor e a surpresa num ricto.

Parece que o encontramos no limiar da emoção que sucederá ao susto: a ira. A sua postura é já a de alguém irritado, aliás. Graças ao rosto? Também. Mas, se ocultarmos as mãos, compreendemos que estamos na presença de uma pose. O que dá plausibilidade à cena e a essa metamorfose são as mãos.











Pormenor de Rapaz mordido por um lagarto (c.1595), Caravaggio


Antes de tudo, a mão esquerda. Retirada, quase passa despercebida, mas é ela que, erguida com ferocidade, manifesta o repúdio. Está ali como que a impedir que alguém se aproxime. E a origem deste desagrado está naturalmente na mão direita que recebe a mordidela. Esta é uma mão delicada, que mantém ainda parte do gesto que antecedeu o arrepio. Talvez se estendesse para «colher» a flor do boião de vidro. Foi quando o lagarto interrompeu o seu movimento grácil, puxando o dedo médio para baixo com a boca repugnante. Pressente-se, então, a imperceptível metamorfose de uma mão repleta de ternura e delicadeza para uma mão crispada e reactiva: o dedo mindinho retrai-se em cunha, o anelar estica-se, o indicador curva-se e o polegar torna-se rígido...









Pormenor de Rapaz mordido por um lagarto (c.1595), Caravaggio


O modelo pode, agora, relaxar e voltar aos seu jogos, porque Michelangelo Merisi já tem o que pretendia.

10.1.07

007 entre figuras

















Lausane (s.d.), Nadir Afonso


Nadir Afonso afirmou, um dia, que em pintura tudo é redutível a figuras geométricas. Parece verdade, embora o expressionismo abstracto de um Rohtko obrigue a uma reformulação de tal tese, bem como a utilização obessessiva da cor pelo próprio Nadir seja prova de que, em pintura, a forma não basta: existem as relações da cor, por exemplo. Importante é ressalvar, no entanto, que as relações das figuras geométricas são um modo de ocupar o espaço e de criar um lugar e não formas vazias de conteúdo. O geometrismo não acusa apenas a exaltação pitagórica da divindade dos números e das formas. Sem um lugar entre , não há vida possível. (Seria interessante pensar, a propósito, que lugar nasce das telas de Rothko e que tipo de experiência proporcionam, se estética se espiritual). Sem lugar, não há respiração. Nem fruição estética. É o que aprende o olhar na relação com a simplicidade das figuras geométricas e o espaço que as define. E depois há uma pintora cujo objecto representado é o lugar ele mesmo: Vieira da Silva.

Les grandes constructions (1956), Vieira da Silva

2.1.07

006 efeitos do fulgor

A perda de forma do indivíduo está, em geral, associada à dissolução da matéria do corpo num todo panteísta ou material e, consequentemente, à morte. Na História da Pintura, há (certamente entre muitos outros) dois exemplos de perda de forma que não representam a morte dos «indivíduos» retratados: penso n’ O espargo, de Manet, e nas Mulheres resplandecentes em frente da chapelaria, de Macke.

O espargo (1880), Manet

Com finalidades diversas embora, os pintores ignoraram parcialmente o traço distintivo do ser que representavam, abrindo-o, prolongando-o pelo espaço adjacente. Esta fusão parcial – que me aparece como um delicioso símbolo da ilusão das fronteiras e da posse, quando se trata de seres vivos (ou, pelo menos, orgânicos) –, esta fusão, dizia, opera-se através da cor ou, mais exactamente, da luz. E é significativo que isso aconteça deste modo, porque a luz é aquilo que possibilita todas as distinções visuais e a sua ausência (a noite, o negro) aquilo que tudo dilui no caos primordial.















Mulheres resplandecentes em frente da chapelaria (1913), August Macke


Nestes dois casos, a luz têm a função da noite, a curiosa função de unir e não de separar. E tal acontece através de um fenómeno natural, o da resplandecência. Como se no instante do fiat lux criador a luz fosse tão intensa que ocultasse, pelo menos em parte, as formas da criatura. Que as ocultasse ou, por outra, como se as mesmas formas ainda retivessem - e desse modo revelassem - algo do fulgor do acto criativo, algo da resplandecência que liberta o acto fecundo. É assim que o criador Manet abandona a tela sabaticamente, após meia dúzia de pinceladas rápidas de pura sugestão. Quanto a Macke, a resplandecência é, porventura, a de um vidro pagão dando sobre as faces urbanas de duas damas. Uma dela protege-se do reflexo, voltando a cara para trás; a outra aproxima-se do vidro com vista a evitar o excesso de luz – mas nem assim evita a dissolução do rosto.

Ou seja, a resplandecência, como excesso de luz que é, cega (ainda que apenas momentaneamente), de tal modo que corresponde exactamente ao efeito que tem a noite sobre os contornos dos objectos e dos corpos.

(Acresce dizer que as mulheres de Macke – como em tantos outros quadros seus – não possuem os pormenores do rosto. O seu objectivo não é representar pormenores ou sentimentos, mas harmonizar um todo de linhas, cores e formas. Esta abstracção faz as suas mulheres resplandecentes assemelharem-se àquelas alucinações em que copos de vidro se desfazem em luz. Talvez o sentido apurado do pintor lhe tenha fornecido a intuição de que, um dia, todas as formas desaparecerão na luz!)

Dedico este texto à Armandina Maia

26.12.06

005 adolescência














Três estudos para figuras na base de uma crucificação - Primeira figura (1944), Bacon


Observais-me, mas estou demasiado encerrado no meu corpo para vos ligar peva. E, paradoxalmente, talvez me encontre assim devido a vossos olhos. Sou um ser exposto, completamente exposto na sua fragilidade sobre uma mesa; um ser sem pernas suas para escapar a vosso olhar esvaziante. Sou adolescente e escondo-me - é o máximo que posso fazer - por detrás da minha guedelha.

A vergonha é o princípio do que sou. O meu estado actual, porém, é outra coisa. Não possuo boca, e isso é o mutismo absoluto - e o mutismo é o supremo suplício para quem é essencialmente grito.

Sou também uma contorção em desequilíbrio, um torso prestes a afocinhar desamparado. Vejo a vertigem que me separa, angustiosamente, do piso laranja. Nada, nem ninguém, pode curar este medo da queda iminente de se cair no que se não é. Porque eu nada sou: a não ser imobilidade e contorção. Sem boca e sem membros não posso fugir nem procurar - a minha única linguagem é o novelo de carne fria que sou.

Chamem-me o autocrucificado - e pensem que os pregos são a blusa que me evolve, a blusa de minha mãe.

20.12.06

004 rios à noite

A noite – ou o anoitecer – confere uma consistência de sólido à água. Na realidade, a luz fá-la parecer viscosa como um óleo queimado, mas em pintura é comum percepcioná-la como areia ou pavimento baço, frio, morto. É assim que a vejo nos portos nocturnos de Rousseau ou na Vista de um porto, de Friederich.

A ilha de Saint-Louis vista do porto Saint-Nicholas (1888), Rousseau














Vista de um porto (1815/16), Friederich


E, depois, em completa oposição, há a água vibrante de Noite estrelada sobre o Ródano ou a água sob a forma de corrente viva na curva d'O canal «Roubine du Roi» com lavadeiras, ambos de Van Gogh. Água heraclitiana, jorro de cor e de vida.

Noite estrelada sobre o Ródano (1888), Van Gogh

O canal «Roubine du Roi» com lavadeiras (1888), Van Gogh

12.12.06

003 as mãos segundo caravaggio, 1

Pormenor das mãos de A virgem do rosário (1607), Caravaggio

A expressividade das mãos de Caravaggio!

Independentemente do motivo da obra, elas merecem sempre uma atenção especial do pintor. Nunca se ficam pelo esboço e raramente são ocultadas na sombra. O resultado é sempre de um requinte e sensibilidade surpreendentes. E mesmo quando não são perfeitas - ele procurou, antes de mais, como é sabido, a imperfeição -, nunca chegam a ser grosseiras. Porque as mãos, para Caravaggio, têm algo a dizer - e o que dizem é essencial.

No que a mãos diz respeito, Caravaggio é, portanto, um expressionista avant la lettre. Em geral, elas, mais do que qualquer outra parte do corpo, contêm a súmula da expressão das figuras retratadas. Seja um sentimento violento ou a serenidade do sono, está lá quase tudo. E esta concentração emocional é tão moderna que antecipa as mãos crispadas de Schille, as mãos deformadas de Picasso, e talvez todas as mãos que, posteriormente, se fizeram linguagem e comunicação em pintura.